Quando um bem essencial é entregue à lógica do mercado, o que está em risco não é apenas a tarifa: é o próprio direito à vida digna.
A privatização da Sabesp foi apresentada ao público como solução moderna, eficiente, lucrativa para o Estado e benéfica ao cidadão. Mas sob o verniz da promessa de investimentos e tarifas mais “justas”, esconde-se uma realidade inquietante: estamos entregando o controle de um bem vital — a água — ao capital privado, cuja lógica não é a do direito, mas a do lucro.
Não é exagero dizer que a Sabesp, até aqui, era uma exceção entre as estatais brasileiras. Dava lucro, investia em infraestrutura e apresentava níveis técnicos estáveis. Era, por definição, um serviço público eficiente. A justificativa para a venda não se sustenta em números, mas sim em ideologia de mercado — a crença de que tudo que é privatizado melhora, mesmo quando a prática já provou o contrário.
A questão é simples e profunda: água não pode ser tratada como produto de prateleira. Privatizar o abastecimento é retirar da esfera pública o controle de um dos elementos mais básicos à sobrevivência humana. E quando esse serviço passa a ser regido por metas de rentabilidade e acionistas, o cidadão deixa de ser usuário de um direito para se tornar cliente de um negócio.
A conta dessa escolha começa a aparecer. Tarifas que deveriam cair sofrem “recomposições”. Investimentos prometidos seguem no papel. Reclamações aumentam, enquanto a sensação de abandono cresce. O risco maior não é a ineficiência — é a naturalização da exclusão. Porque, na lógica de mercado, quem não paga, não tem. E ponto.
Felizmente, o cidadão ainda tem a seu favor a força da lei. O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 6º, assegura a modicidade tarifária, a informação clara e a proteção contra abusos. Já o artigo 42 garante a devolução em dobro de valores cobrados indevidamente. Esses direitos não são decorativos: são instrumentos de resistência.
Mais do que isso: a Constituição Federal coloca o acesso à água e ao saneamento no centro da dignidade humana. O artigo 5º garante direitos fundamentais; o artigo 196 afirma que saúde é direito de todos e dever do Estado; o artigo 200 impõe ao SUS a colaboração para a proteção ambiental, e o artigo 225 consagra o meio ambiente ecologicamente equilibrado como bem de uso comum do povo. Nenhuma política pública pode ignorar esse conjunto de garantias.
É preciso lembrar: a população não é refém dessa decisão. Reclamar, fiscalizar, acionar o Procon, denunciar à Arsesp e, se necessário, recorrer ao Judiciário não é apenas um direito — é um dever cívico. A passividade diante da perda de direitos essenciais é o primeiro passo para a normalização do retrocesso.
Privatizar a água é escolher quem pode e quem não pode ter acesso à vida em sua forma mais elementar. E isso, numa sociedade que se pretende democrática, é inadmissível.

Dra. Cidmeire de Oliveira
Advogada – OAB/SP 217.590
Presidente da Comissão “OAB Vai à Escola” – Subseção Itapevi.

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