A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) tomou uma decisão de grande impacto na segurança pública e nos direitos humanos ao derrubar o veto do governo estadual à controversa gratificação faroeste. A medida, que já gerava debate, agora reacende discussões sobre o modelo de atuação policial e as possíveis consequências de incentivos financeiros atrelados a confrontos letais. Este artigo, que faz parte da Lei 11.003/25, visa reestruturar o quadro da Secretaria de Estado de Polícia Civil, mas um de seus dispositivos mais polêmicos prevê a premiação de agentes por ações específicas, incluindo a chamada “neutralização de criminosos”. A decisão da Alerj, apesar das críticas de órgãos de defesa de direitos, coloca novamente em pauta os dilemas éticos e legais de uma política que não é inédita no estado e já foi suspensa no passado.
Alerj derruba veto e restabelece gratificação para policiais civis
Em uma sessão marcante nesta quinta-feira, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) decidiu pela derrubada do veto do Poder Executivo estadual a um artigo crucial da Lei 11.003/25. Este dispositivo, que gerou amplo debate público e críticas de entidades de direitos humanos, estabelece a criação da tão discutida “gratificação faroeste” destinada a policiais civis. A legislação em questão tem como propósito primordial a reestruturação e modernização do quadro permanente da Secretaria de Estado de Polícia Civil, buscando aprimorar a capacidade operacional e administrativa da corporação. No entanto, o trecho específico que trata da premiação é o epicentro das controvérsias, levantando questões sobre os incentivos oferecidos e os critérios para sua concessão, especialmente em um estado com histórico de alta letalidade policial.
Detalhes da gratificação e o controverso “neutralização de criminosos”
A gratificação em questão prevê um pagamento adicional aos policiais civis cujos valores podem variar substancialmente, oscilando entre 10% e 150% dos vencimentos base do agente. Os critérios para a concessão dessa bonificação são múltiplos e englobam diferentes cenários de atuação policial. Entre eles, destacam-se a vitimização em serviço, ou seja, situações em que o policial é ferido ou morto no cumprimento do dever; a apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito durante operações policiais; e o ponto mais sensível e questionado: a “neutralização de criminosos”.
O termo “neutralização” é o que mais tem suscitado preocupações e debates. Para seus defensores, ele representaria o sucesso em confrontos com criminosos, culminando na interrupção de suas ações. Contudo, para críticos, a imprecisão do termo abre margem para interpretações perigosas, podendo ser associado diretamente à morte de indivíduos, independentemente de haver um processo judicial que comprove a ilicitude de suas ações ou a legitimidade da intervenção policial. A inclusão dessa modalidade de premiação é vista por muitos como um incentivo direto à letalidade, distanciando-se de uma política de segurança pública que priorize a preservação da vida e a investigação rigorosa dos fatos.
Inicialmente, o governo do Estado havia vetado o dispositivo, alegando ausência de previsão orçamentária para a realização dos pagamentos. Surpreendentemente, durante a votação na Alerj, o próprio líder do governo na Casa, deputado Rodrigo Amorim (União), manifestou-se a favor da derrubada do veto, sinalizando uma guinada na postura governamental ou, no mínimo, uma divisão de entendimento dentro do próprio Poder Executivo sobre a relevância e a viabilidade da medida.
Controvérsias e o alerta da Defensoria Pública da União
A decisão da Alerj de restabelecer a gratificação faroeste não ocorreu sem fortes contestações. A Defensoria Pública da União (DPU) foi uma das primeiras e mais veementes instituições a denunciar a ilegalidade e inconstitucionalidade do projeto. Já em setembro do ano corrente, o órgão havia emitido um alerta contundente sobre os riscos e as violações que a implementação de tal política poderia acarretar, especialmente no que tange aos direitos fundamentais e à própria estrutura legal do país. A posição da DPU ressalta uma preocupação generalizada com os possíveis efeitos de uma medida que, para muitos, desvirtua os princípios de uma segurança pública cidadã e democrática.
Inconstitucionalidade, vício de iniciativa e o impacto nos direitos humanos
Segundo a Defensoria Pública da União, o dispositivo de premiação não apenas é inconstitucional, mas também estimula, de forma preocupante, confrontos letais. Essa política, na visão da DPU, viola diretamente a Constituição Federal do Brasil e contraria decisões importantes proferidas tanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quanto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Essas decisões buscam coibir a violência policial desproporcional e garantir o devido processo legal e a presunção de inocência.
Além das preocupações com a letalidade, a DPU apontou um grave “vício de iniciativa” no projeto. Em conformidade com a legislação brasileira, propostas que instituam gratificações para agentes de segurança devem, por princípio, ser de iniciativa da respectiva chefia do Poder Executivo, e não do Legislativo. Essa exigência visa garantir o equilíbrio entre os poderes e a adequada gestão orçamentária do estado, evitando que projetos com impacto financeiro significativo sejam aprovados sem a devida análise e proposição do Executivo, que é o responsável pela execução do orçamento.
Um dos pontos mais criticados pela DPU, conforme expresso em documento pelo defensor regional de direitos humanos do Rio de Janeiro, Thales Arcoverde Treiger, é a própria terminologia utilizada na lei. O termo “neutralização”, segundo Treiger, é impreciso e, por si só, viola a dignidade da pessoa humana. “Pessoas não são ‘neutralizadas’, mas sim são mortas ou feridas, havendo exclusão, ou não (constatada após investigação policial e eventualmente de processos judiciais), da ilicitude em razão da necessidade de preservação da vida ou da segurança de pessoas inocentes”, afirmou o defensor. A escolha de tal vocabulário é vista como uma desumanização, que pode contribuir para a banalização da violência e dificultar a responsabilização em casos de excesso.
Precedentes históricos e os riscos de uma política controversa
A chamada “gratificação faroeste” não representa uma novidade no cenário fluminense. O Rio de Janeiro já experimentou uma política semelhante em um passado não muito distante, o que torna as atuais discussões ainda mais pertinentes e as advertências dos órgãos de direitos humanos mais urgentes. A análise dos precedentes históricos oferece uma lente valiosa para entender os riscos e as implicações de medidas que, embora possam parecer atraentes em um primeiro momento, podem ter consequências graves e duradouras para a sociedade.
O retorno de uma prática já suspensa e as preocupações com a letalidade policial
Entre os anos de 1995 e 1998, uma política com características similares à “gratificação faroeste” esteve em vigor no estado do Rio de Janeiro. No entanto, sua implementação foi brevemente interrompida por iniciativa da própria Alerj. A suspensão ocorreu após um período marcado por intensas denúncias de extermínio e de um alarmante estímulo à letalidade policial. Relatórios da época e investigações apontaram que a bonificação por mortes em serviço poderia ter contribuído para um aumento no número de mortes decorrentes de intervenções policiais, muitas vezes sem a devida apuração ou justificativa.
O retorno dessa prática, mesmo que com algumas nuances, reacende o alerta para os perigos de se institucionalizar incentivos financeiros atrelados à violência. Críticos argumentam que, em um estado que já lida com altos índices de letalidade policial e desafios significativos na apuração de casos de abusos de força, uma gratificação desse tipo pode agravar a situação, minando a confiança da população nas forças de segurança e perpetuando um ciclo de violência. A preocupação é que o foco na “neutralização” possa desviar a atenção de outras estratégias de segurança pública mais eficazes e menos letais, como a inteligência, a investigação qualificada e o policiamento comunitário. O debate agora se concentra nas ações futuras do governo e na possibilidade de novas contestações judiciais para reverter o que muitos consideram um retrocesso na política de direitos humanos.
FAQ
O que é a “gratificação faroeste”?
É um benefício financeiro adicional para policiais civis do Rio de Janeiro, cujos valores variam entre 10% e 150% dos vencimentos. É concedida em casos como vitimização em serviço, apreensão de armas de grande calibre, e, de forma controversa, pela “neutralização de criminosos”.
Por que o governo estadual havia vetado a gratificação?
O governo do Estado havia vetado o dispositivo com a justificativa de ausência de previsão orçamentária para a realização dos pagamentos.
Quais são as principais críticas da Defensoria Pública da União (DPU) à gratificação?
A DPU critica a gratificação por considerá-la inconstitucional, por estimular confrontos letais, violar a Constituição Federal, decisões do STF e da CIDH, e por apresentar vício de iniciativa. Além disso, a DPU aponta que o termo “neutralização” é impreciso e viola a dignidade humana.
Para aprofundar-se nos desdobramentos desta decisão e suas implicações para a segurança pública e os direitos humanos no Rio de Janeiro, continue acompanhando as notícias.



